SATYRICON, o filme de Federico Fellini (1969 ), de um texto de Walter de Medeiros, da
Universidade de Coimbra
Muitas definições se têm proposto do Fellini-Satyricon: a dolce vita na
Roma antiga; uma viagem aos infernos no tempo de Nero; um exercício de
poesia; uma fábula antiga sobre o nosso tempo; o filme (disse-o Ingmar
Bergman)
que encerra uma época do cinema e que abre uma nova. Todas estas
tentativas
contêm uma parcela de verdade; mas, para o nosso objetivo, serve uma
interpretação mais modesta (extraída de uma entrevista entre o cineasta
e o
escritor Alberto Moravia): o Satyricon de Fellini é um filme
fragmentário, como
fragmentário é o romance de Petrônio; mas é um filme onírico, um sonho
sonhado
por Fellini, porque entre nós e a Antiguidade se interpôs o diafragma do
cristianismo. Fellini criou um mundo pré-cristão, onde há muita noite,
muita
escuridão, muitas paisagens imersas em um sol dolente, muitas passagens angustas
e angustiosas, muitas vestes sórdidas de dó e uma infinidade de
monstros e aleijões, um inferno sem intercadências de purgatório ou de
paraíso.
E, no entanto, em duas ou três cenas, e sobretudo na final, uma luz de
esperança
irradia sobre as trevas da avidez e do canibalismo.
Quando a faca dos caçadores de heranças se levanta para esquartejar o
cadáver de Eumolpo, a câmara desvia-se para o lume da praia, onde Encolpo,
com uma alegre revoada de jovens, se prepara para embarcar. Ε a sua voz
de
fundo profere estas palavras:
«Com eles decidi partir. O navio transportava mercadorias
preciosas e escravos. Tocamos portos e cidades desconhecidas. Pela
primeira vez ouvia os nomes de Celíscia e de Réctis. Em uma ilha coberta
de ervas altas, de suave perfume, um adolescente grego me apareceu e
me narrou os anos...»
São novas aventuras que começam e novos sonhos que iluminam os
olhos deslumbrados. Depois, tudo se vai delindo e apagando na poeira dos
séculos. Fica apenas um fresco pompeiano, onde a face de Encolpo se
confunde
com outras, anônimas e desconhecidas, que vivem o além.
Um além onde a esperança mora, porque o sol renasce todas as manhãs.
Um além onde o sorriso de Petrônio deixou de ser expectante, como a
esfinge,
porque a sua hora chegou — e o ápice da glória.
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