"O meu país é a utopia. Um mapa do mundo que não compreenda o país da Utopia não merece nem mesmo um olhar, pois ignora o único país ao qual a humanidade continuamente chega. E quando a humanidade lá atraca, fica alerta, e levanta novamente as âncoras ao vislumbrar uma terra melhor."- Oscar Wilde

SATYRICON DELÍRIO – Uma pausa para homenagear Nico Nicolaiewsky

E como disse o Luiz Nobre: “... agora o céu começa a virar uma sbórnia!!!”



Compartilhando de Hique Gomez

ÀS CINCO DA  MANHÃ

Fabrício Carpinejar

Às cinco da manhã, a morte tem menos esperança, a fé tem menos altares, as velas se apagaram nas esquinas de Porto Alegre. Às cinco da manhã, o Guaíba quebrou sua luz, o pão se partiu sozinho, o açúcar perdeu seu brilho.
Ás cinco da manhã, as roletas do trem pararam de pensar, os elevadores se sentiram velhos, as pombas fizeram greves dos farelos.
Às cinco da manhã, o suor veio antes do sol, as ladeiras se despedaçaram como vidraças, as sombras correram para o Mercado Público.
Às cinco da manhã, o musgo se divorciou da pedra, ex-fumantes voltaram ao vício, amantes fingiram derradeiras promessas, não havia chaves para abrir as janelas.
Às cinco da manhã morreu Nico Nicolaiewsky. Ai que terrível serão as cinco e meia da manhã nos relógios da capital gaúcha durante o dia inteiro.
Nico colocou seu último suspiro para sorrir. Pensou que fosse a mesma coisa. Sorrir, suspirar.
Acenou com os dentes, mordeu a palha do vento, como a dizer que daria uma volta no invisível e já retomava o ensaio com os violinos.
Às cinco da manhã, Nico largou ao chão sua gravata, seu colete, seu par de sapatos bico fino, seu bigode da Sbórnia, suas canções desesperadas de amor. E as rosas brotaram de sua pele branca e cansada.
Enrolem o maestro Pletskaya com as cortinas do Theatro São Pedro, coloquem algodão em seus ouvidos, ele é todo feito de cristal: ele é todo cristalino.
Morreu Nico. Morreu o tango de novo. Morreu a própria tragédia. Sua voz era a de um lobo que já havia sido homem. Hoje só podemos cantar uivando.
Não terá caixão para levá-lo. Não terá caixão para fechá-lo. Ele não é um morto, mas um piano parado.
Confisquem a lua em fevereiro, os corrimões das escadas, soltem os dragões e os cachorros de pedra da Praça da Matriz.
Segurem minhas mãos para não pegar o telefone. Segurem meus braços para não esmurrar a porta. Segurem minhas pernas para não procurá-lo. Segurem meus joelhos para não acordar o acordeon. Amarrem-me em qualquer lugar que não fale português e desperte saudade. Prendam-me na cama, anestesiem meu sangue – estou tão acostumado a enxergá-lo vivo que fui junto.
Só deixem minha cabeça livre. Para mexer a cabeça, para dançar Copérnico com os olhos e esperar que ele volte.

Ele sempre volta.

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