O MISTÉRIO DE ETTIENE - 1
…
- De repente você ficou
pensativo.
- De repente me veio à mente um
homem que conheci há muito tempo.
- Muito?
- Nem tanto, mas muito. Um
homem que me ensinou a essência das coisas. Um sujeito encantador, um artista,
um professor, um mestre. Apesar da idade, já tinha passado dos 70 anos, era uma
verdadeira tempestade de energia e desejo.
- Quer me falar dele?
- É bom lembrar. Ilumina minhas
convicções. Acorda meus músculos adormecidos.
- Hammm...
- Sabe qual era a sua maior
característica? A paixão. Paixão que lhe provocava momentos de grande cólera e
também momentos de grande beleza interior. Odiava qualquer sinal de preguiça. Doava-se
o tempo inteiro para tudo o que tinha a ver com o teatro. Tinha apetite pelo
belo e explodia de vida, imaginação, cultura. Tinha obsessão pelo bem-fazer,
pelo bem-conceber, não demonstrava nunca qualquer tipo de fraqueza, quando o
assunto era a arte, o trabalho.
- Como era seu nome?
- Ettiene. Dessas pessoas que
passam pela sua vida e deixam uma marca! Sua marca era um pensamento: “O teatro
é o ator. O ator é a arte do corpo. Então, o teatro é a arte do corpo.”
- ...
- Me disse outras coisas
lindas. Ensinou-me que a nossa arte do teatro é a arte de ampliar e depurar.
Entende?
- O quê?
- O que fazemos na vida todas
as vezes em que não dançamos. Que nossa arte é reconstruir a natureza a partir
dos nossos corpos. E é daí que surgem os grandes temas clássicos que usamos pra
colocar no palco: a luta, o trabalho, as relações amorosas, a guerra, o fervor
político, a relação com Deus, as relações com a sociedade. E também o que nos
falta. Tudo o que nos falta, mesmo que tenhamos tanto. Mas sempre nos falta
alguma coisa, não é?
- Tanto...
- E não é um bom motivo? Por
que fazemos teatro? Porque nos falta o teatro. E o que nos falta para fazer
teatro? Que tal?
- Você sempre dá um nó em meus
pensamentos.
- Tento.
- Consegue.
- Por que vamos em direção ao
misterioso?
- Por quê?
- Por quê?
- Por quê?
- Porque precisamos do
mistério. É inconcebível querer ir para a cena e não permitir-se algum tipo de
rompimento. Precisamos
depurar nosso corpo, ampliar nosso corpo, depurar nosso espírito, ampliar nosso
espírito. Não tem outro jeito. Nem existe uma formula. É isso é pronto.
- ...
- ...
- Silêncio de novo?
- Continuamos amanhã?
- Que dúvida.
- Então vamos tomar um café com
leite e saborear um misto frio. Adoro.
- Vamos. É sempre você quem
decide.
...
Ettienne Decroux - 1808/1991